A primeira definição de homem de Abbagno, a qual diz ser o homem um animal racional, e suas equivalentes, como um animal capaz de ciência ou o único animal que possui razão, representam a imagem da subjetividade humana que tem se sobressaído em nossa cultura. É aquela que nos foi legada pelo pensamento cartesiano do cogito, ergo sum (penso, logo existo), onde a figura de um sujeito pensante, racional e reflexivo é considerada como a origem e o centro do pensamento e da ação.
No entanto, diante dos avanços constantes das biotecnologias e da inteligência artificial, os questionamentos do homem acerca da sua “humanidade” – e mesmo de sua centralidade – passam a ser cada vez mais constantes. Segundo Fernanda de Souza Lima da Costa e Silva em sua dissertação, quando há a possibilidade de que uma máquina se iguale ou até mesmo supere o desempenho de quem a criou, que o homem possa ser clonado ou mesmo ter seu código genético modificado, o sentido da “humanidade” tende a ser repensado.
Em um estudo de 1917, Freud propôs que ao longo da história o homem teria sofrido três grandes golpes ao seu amor-próprio. Cada uma dessas “feridas narcísicas”, como foram referidas, levou a uma reestruturação da sua relação com o mundo em busca de um equilíbrio. O primeiro golpe, ao qual Freud denominou cosmológico, teria sido provocado pela impactante revelação do heliocentrismo em detrimento ao conhecido e aceito geocentrismo, ou seja, a descoberta de que o sol era o centro do universo e não a terra – descoberta que alguns séculos mais tarde mostrou-se ainda errônea, já que nem mesmo o sol ocupa o centro do universo, ele é apenas uma estrela dentre milhões.
Tal descoberta colocou o homem numa minúscula e desconfortante posição de coadjuvante em relação ao universo e não mais no centro do mesmo. Bem como a Igreja, que necessitou justificar através da alma humana a singularidade do homem no mundo. Se a condição cosmológica do homem já não era mais tão privilegiada, no âmbito religioso o homem não deixou completamente de ocupar um lugar de destaque, uma vez que seguia sendo senhor de todas as outras criaturas e único com contato direto com Deus.
Entretanto, essa condição foi novamente abalada através do segundo golpe narcísico, chamado por Freud de golpe biológico. Ele se deu após as descobertas científicas de Charles Darwin acerca da evolução das espécies, a qual apontava ascendências em comum entre o homem e outros animais. Essas descobertas resultaram no enfraquecimento do sentimento de primazia humano em relação aos demais animais desenvolvido ao longo do processo civilizatório.
Novamente o homem precisou de suporte religioso para sustentar sua posição proeminente, posicionando-se no sentido de sustentar a importância da racionalidade humana. Ou seja, se há algo de singular no humano é justamente a capacidade reflexiva não partilhada pelo resto do reino animal.
A terceira ferida narcísica teria sido causada pelas descobertas da psicanálise pelo próprio Freud. Segundo ele, não sendo mais senhor do universo e nem das demais criaturas, o homem julgava ser, ao menos, senhor de si mesmo. Pela via das pulsões e do inconsciente, a psicanálise veio demonstrar que “o ego não é senhor da sua própria casa”.
É possível, assim, perceber que as três feridas narcísicas descritas por Freud indicam não apenas o deslocamento da posição central do homem no mundo, mas também transformam sensivelmente a participação de Deus no imaginário humano. Os “golpes” causados pelas descobertas científicas de Copérnico, Darwin e Freud criaram um grande tensionamento na relação da religião com a ciência.
Diante desse cenário, fomentado por essa tensão Religião X Ciência como pano de fundo e a partir dos inúmeros avanços tecnológicos atuais, o historiador Mazlish sugere um importante conceito que diz que estaríamos diante de uma quarta ferida narcísica. Esse último golpe seria, segundo este autor, produto do reconhecimento da crescente semelhança entre o homem e a máquina. Assim, essa tão defendida posição “especial” do homem no mundo seria definitivamente perdida. Não apenas ao perceber que sua existência não é tão diferente da existência da máquina, quando essa se torna capaz de simular seu modo de ser, como também pela descoberta de que o seu funcionamento se da através de processos que podem ser chamados de “maquínicos[¹]” e se ver como um ser capaz de ser produzido por meios científicos.
Assim, como conclui Costa e Silva, a partir do momento em que a existência humana puder ser confundida ou igualada à existência da máquina, o homem pode ser entendido como nada além de simples matéria. Matéria meramente programada como a máquina. Sem nenhuma transcendência ou qualquer característica que a eleve acima das outras.
[1] Para melhor entendermos o termo “maquínico” é fundamental investigarmos o conceito de máquina para Guattari. Para ele, o conceito de máquina surge com o propósito de substituir o de estrutura e remete à ideia de produção, processualidade, singularização, de produção de diferença ou diferenciação. A partir da ideia de produção da máquina Guattari verá tanto a subjetividade quanto o inconsciente, o desejo, o social, como máquinas, como processualidade e não a partir de representações baseadas em estruturas universais. A este tema, o autor dedicou uma obra de grande importância chamada O inconsciente Maquínico: Ensaios de Esquizo-análise, publicada em 1979. Posteriormente, em trabalhos conjuntos com Deleuze, o conceito é aprofundado como podemos constatar em obras como, por exemplo, Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia.
Tem interesse pelo assunto? Gostaria de ler mais textos como esse? Então adquira agora o meu livro!
Comentarios