Das mais altas esferas do poder até o cidadão comum, não é à toa que Deus esteja sempre na boca do brasileiro, um povo que vive em um país de maioria cristã, onde cultura e fé estão intimamente ligadas e no qual a vida religiosa muitas vezes preenche lacunas deixadas pelo Estado. E isso talvez explique porque o Brasil se destaca quando o assunto é espiritualidade. Segundo a pesquisa Global Religion 2023, produzida pelo instituto Ipsos, aproximadamente nove em cada dez brasileiros acreditar em Deus.
Ricardo Mariano, sociólogo da Religião e professor da Universidade de São Paulo, ressalta que o Brasil costuma se destacar em pesquisas internacionais sobre religiosidade e fé porque a crença em Deus e a espiritualidade estão profundamente intricadas na nossa cultura, mesmo entre quem não tem compromisso com nenhuma religião específica. O que fica explícito em qualquer conversa informal, diante da utilização constante de expressões como "Vai com Deus.", "Graças a Deus!", "Deus me livre." ou "Só Deus sabe…".
Essa acepção foi muito bem explorada pelo sociólogo Roberto DaMatta em seu livro Fé em Deus e pé na tábua: Ou como e por que o trânsito enlouquece no Brasil, onde o autor mostra um cenário com uma alta carga de agressividade e violação das leis que causam um grande número de sinistros e mortes no trânsito brasileiro.
Igualmente genial, o cartunista e humorista Gilberto Maringoni, de forma muito irreverente, utiliza no livro Como Não Enlouquecer no Trânsito. Primeiro e Verdadeiro Livro de Auto Ajuda, o famoso trecho bíblico da gênese da terra para criticar o nosso atual sistema de trânsito:
No princípio era o caos. E Deus criou o céu e a terra. A terra estava sem forma e vazia. Deus disse: “Que exista a luz!”. E a luz começou a existir. Nos outros dias, Deus criou terras e mares, as relvas, as árvores, as estrelas, os peixes e os animais. No sexto, já com a mão meio cansada, criou o homem. E tempos depois, o homem criou o automóvel à sua imagem e semelhança. E vários automóveis reunidos criaram o trânsito engarrafado. E, no fim, voltou-se ao caos.
Toda essa reflexão teve início quando participei, recentemente, de um evento realizados pela biblioteca da Escola de Pública de Trânsito do DetranRS, intitulado Roda de Conversa, que foi a culminância de um projeto que teve início há dois anos, chamado Clube de Leitura e se propôs ao estudo e debate dos capítulos do CTB (Código de Trânsito Brasileiro). Código esse que, durante o evento, foi citado por diversos participantes como sendo 'a Bíblia do trânsito".
De maneira muito elucidante, um deles, a advogado da autarquia Luis Waschburger, discorreu sobre como o pacto social, ou contrato social, explica o surgimento do Estado e a organização da sociedade. Segundo ele, o pacto social é o ato voluntário que marca a transição do estado de natureza para a sociedade civil. No estado de natureza, os seres humanos vivem em igualdade de direitos, mas a ausência de leis civis gera conflitos. Para resolver esses conflitos, é necessário instituir um conjunto de leis civis que criem uma sociedade civil ou estado civil. O pacto social é fundamentado em um acordo entre os cidadãos e uma autoridade, em que os cidadãos abrem mão de alguns direitos individuais em troca da proteção do Estado.
No entanto, no caminho do bem comum, o estado tem deixado tantas lacunas quanto são os buracos das nossas estradas! A sociedade, por sua vez, parece estar dia após dia mais preocupada com o bem-estar individual, a ponto de fazer com que, para que voltemos à barbárie da Idade Média, nos falte apenas um Rei e os feudos. Talvez o que nos reste seja apenas a fé.
Durante muito tempo, acreditei que a fé humana fosse um atributo em vias de extinção. Porém, diante dos horrores praticados diuturnamente nas vias do país, percebo que o ser humano é um ser de muita fé: sobreviver em cidades onde outros humanos conduzem máquinas de mais de uma tonelada, cheias de líquido inflamável, a velocidades sobre-humanas e esperando que todos sigam leis, só crendo em alguma força divina mesmo!
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